Este projeto tem como meta aproximar diferentes subcampos no interior da Antropologia a partir da noção de criação, compreendida em sentido alargado. Trata-se de investir na expansão dos usos e concepções da criação, explorando deliberadamente a sua polissemia, as relações variadas que estabelece com a memória e as possibilidades de relações que ela permite inferir. Ambicionamos com isso não apenas contribuir para os debates específicos dos cinco eixos que compõem o projeto - parentesco, pensamento indígena, ecologia, artesanias, invenções em ciências e técnicas - mas extrair consequências teóricas e pragmáticas mais amplas, mediante a iluminação recíproca das temáticas em foco. A hipótese central é que o prisma da criação, testado em loci etnográficos precisos, redimensiona, amplia e desloca certas discussões canônicas na Antropologia, por exemplo: as análises do parentesco que, retomadas por uma via pragmática, permitem associar o parentesco aos domínios da política, da vida produtiva, da família e da religião; as noções de animalidade e espécie, consideradas em geral como dadas, podem ser redefinidas a partir de formulações indígenas que interconectam caça, criação, relação e cuidado em emaranhados mais-que-humanos e multiespécies; as concepções sobre os fazeres "populares", alojados, de um lado, nas controvérsias em torno das noções de tradição e patrimônio e, de outro, nos debates sobre identidades e resistências étnico-políticas, se renovam sob o ângulo das misturas e contaminações criativas; finalmente, as discussões sobre os conflitos ecológicos e ontológicos assim como certos debates na seara das ciências que, tomados do ângulo da criação, permitem dialogar com teorias contemporâneas sobre a destruição, o "fim do mundo" e o Antropoceno.
Este eixo do projeto pretende explorar etnograficamente rebatimentos da noção de criação no parentesco, a partir de uma abordagem pragmática e poiética. Com essa perspectiva se pretende investigar transbordamentos do parentesco e das relações familiares, inclusive em suas extensões metafóricas, para “domínios” ou “esferas sociais”, como por exemplo, a política, a saúde, a educação, o trabalho, a religião, sempre em conformidade às compreensões dos sujeitos das investigações. Trata-se também de examinar a relação entre sujeito e objeto nos atos, modos e políticas de criação e de cuidado; as composições relacionais entre e nos agentes envolvidos, quer sejam pessoas, animais, coisas, substâncias ou forças; a constituição de coletivos, grupos, comunidades em engajamentos irredutíveis aos objetivos ou interesses comuns. No horizonte de análise vislumbram-se contraposições às distinções hegemônicas entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade, face às oposições simbólicas de ontologias dominantes.
Este eixo do projeto propõe interrogar o problema da criação e da memória desde os fazeres-saberes “artísticos”, “artesanais” e “populares”, em suas diversas expressões e contextos. Trata-se de inspecionar modalidades variadas de criação do ponto de vista dos sujeitos (humanos e não-humanos) e materiais; do ângulo das técnicas e instrumentos, eles próprios criados em função de agenciamentos diversos; também dos processos de aprendizado e formação, e dos espaços variados em que estes têm lugar. Procurar-se-á ainda seguir os destinos divergentes das coisas criadas (finalidades práticas, usos rituais, políticos etc.), com atenção às transformações que as criações conhecem em seus trajetos (a conversão do “artefato” em “arte”, por exemplo). O exame das criações artístico-artesanais deve dar atenção ainda às mediações e misturas que ligam coisas e pessoas, dispositivos, procedimentos e materialidades; contaminações criadoras que levam a processos de diferenciação e metamorfoses, fluxos e processos
Manejo, neste eixo do projeto, é um instrumento conceitual que pretende investir a análise nos agenciamentos da criação de modo a ligá-los à atividade da memória; ele tem como seu contraponto conceitual a noção de confiscação e implica o conceito de ecologia. As pesquisas ligadas a este eixo do projeto podem dedicar-se à descrição-analítica de diversas modalidades de manejo, encarado como uma das formas ecológicas de rejeição ao modelo capitalista de transformação de matéria e vida em energia comercializável. Ainda que operável em diferentes situações geográficas e ambientais, este eixo está empiricamente circunscrito a Caatinga da Mesorregião do Sertão de Pernambuco
As pesquisas deste eixo se interessam etnograficamente por concepções como natureza, ambiente, vida, espécie, preservação e cuidado, abrindo possibilidades tanto para refletir a forma que diferentes coletivos concebem e classificam o ambiente, bem como pensam politicamente a própria ideia de conservação de seus territórios, quanto às formas que essas histórias e experiências podem ser contadas e escritas. No caso dos coletivos indígenas, diante da destruição e constantes ameaças à suas vidas e territórios, a paisagem que resiste é resultado de um constante “criar” e “cuidar”, e a vida nas florestas se desenrola de diversas formas, onde animais e plantas se interconectam com as ações humanas em um jogo complexo e criativo que envolve diferentes sujeitos (humanos e não-humanos) em suas composições de mundos e naturezasculturas. A ideia desse eixo é congregar pesquisas que pensem a criação como um dos conectores destas histórias e naturezasculturas
Este eixo de pesquisa pretende a conjugação entre realismo científico e especulação imaginativa na tarefa urgente de considerar e pôr em curso novas usinas teóricas e experiências práticas que encarem o Antropoceno (proposição de uma nova época geológica marcada pelos impactos em escala e velocidade de certas ações antrópicas na regulação do planeta) como um constrangimento para o pensamento contemporâneo. Deve refletir tanto sobre as novas figurações da Natureza quanto do “Anthropos” por via das ciências, filosofias e outras fontes de conhecimento (que se possam denominar de “minoritárias”). A partir dos constrangimentos a um só tempo ecológicos e sociais que o Antropoceno expressa, este eixo de pesquisa busca flagrar, não sem aportes etnográficos, os reembaralhamentos de humanos e não-humanos sob crise socioclimática, de modo a mapear outras diferenças e semelhanças, descontinuidades e continuidades entre eles. Devem advir daí, ademais, revisões radicais sobre o que caracterizamos como humano, natureza, sociedade e política.